domingo, 28 de março de 2010

Voar juntos, mas não amarrados


Conta uma lenda indígena que, certa vez, Touro Bravo e Nuvem Azul chegaram de mãos dadas à tenda de um velho feiticeiro da tribo e pediram:
- Nós nos amamos e queremos ficar juntos. Mas nos amamos tanto que queremos um conselho que nos garanta ficar sempre juntos, que nos assegure estar um ao lado do outro até a morte. Há algo que possamos fazer?
E o velho, emocionado, ao vê-los tão apaixonados e tão ansiosos por uma palavra, disse:
- Há o que possa ser feito: Nuvem Azul deves, apenas com uma rede, caçar o falcão mais vigoroso e trazê-lo aqui, com vida. E tu, Touro Bravo, deves caçar, também, apenas com uma rede, a mais brava de todas as águias e trazê-la para mim, viva!
Os jovens se abraçaram com ternura e logo partiram para cumprir a missão.
E o feiticeiro postou-se na frente da tenda para esperar os dois amantes com as aves.
O velho constatou que eram verdadeiramente os formosos exemplares que ele havia pedido e ordenou:
- Peguem as aves e amarrem uma à outra pelos pés com essas fitas de couro. Soltem-nas amarradas para que voem livres.
Eles fizeram o que lhes foi ordenado e soltaram os pássaros. A águia e o falcão tentaram voar, mas conseguiram apenas saltar pelo terreno.
Minutos depois, irritadas pela impossibilidade de voar, as aves se atiraram uma contra a outra, bicando-se até se machucarem.
E o velho disse:
- Jamais esqueçam o que estão vendo, este é o meu conselho.
Vocês são como a águia e o falcão. Se estiverem amarrados um ao outro, ainda que por amor, não só viverão arrastando-se como também, cedo ou tarde, começarão a ferir um ao outro. Se quiserem que o amor entre vocês perdure, voem juntos, mas jamais amarrados.
Libere a pessoa que você ama para que ela possa voar com as próprias asas.”

domingo, 14 de março de 2010

O abandono que gera dependência

Estava refletindo sobre uma situação muito frequente nos hospitais de urgência: o "piti", também conhecido como "peripaque".

O portador de tal mazela é o tipo de paciente mais negligenciado e, ainda assim, frequentador assíduo dos hospitais gerais. Tal paciente dá de cara com o desprezo e falta de paciência dos médicos atarefados e comprometidos com doenças importantes de verdade ali no plantão; sofrem com a falta de atendimento, mesmo quando atendidos. Recebem terapêuticas doses de injeções com água destilada, beliscões e gritos. Além dos reconfortantes prognósticos: "você não tem nada", "é coisa da sua cabeça" ou até um "isso é frescura".

A realidade dos serviços de urgência do nosso país é de superlotação, falta de recursos, péssimas condições de trabalho e remuneração pífia dos profissionais. Esses fatores somam-se dando como resultado a qualidade da assistência prestada a qualquer paciente, mas quando esse paciente é um "peripaque" tais fatores multiplicam-se elevados a potência da falta de empatia. O resultado raramente é tratamento.

...e assim, refletindo, veio-me à cabeça uma passagem do livro Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais por Paulo Dalgalarrondo:

A Histeria conta uma história. O afeto intolerável e a situação conflitante tornam-se inconscientes, através do recalcamento. O vínculo com a consciência se faz através dos sintomas: esconde e insinua a situação conflitante. As manifestações corporais são o retorno do recalcado. A via é simbólica, oposta à via anatômica. O corpo narra, fala, descarrega. O afeto é convertido na qualidade física da manifestação corporal.
O corpo dramatiza como num jogo de mímica, à procura de um decifrador. Corpo simbólico, história, corpo mímica, pedindo e evitando ao mesmo tempo ser desvendado. Não há lesão orgânica. A via é a da escrita. A anatomia é singular, relacionada à história da sexualidade e da vida do paciente. Contudo, o vínculo com a realidade é mantido. E quem a vivencia precisa de ajuda. Que não a neguemos.


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