sábado, 28 de novembro de 2009

Lua de fel (Bitter moon)




Um mar calmo, em diminutas ondas vacilantes, rasteja sob um céu escuro, nublado e gélido, avistado pela moldura ovalada e dourada de uma janela. Assim somos convidados a embarcar a bordo de um cruzeiro com destino a Istambul em uma verdadeira “Lua de fel”. Dirigido por Roman Polanski (polêmico diretor francês premiado com um Oscar em 2002 pelo filme “O pianista”) “Lua de fel” configura entre os mais amargos filmes sobre o amor, as obsessões e a sexualidade humana.

Logo de início somos apresentados a Nigel e Fiona, um simpático e apático casal britânico, interpretado por Hugh Grant e Kristin Scott Thomas, que, de forma contida, tenta mostrar-se empolgado com aquela que seria a sua segunda “lua de mel”, após 7 anos de casados, a caminho da Bombain, na Índia. Uma espécie de “terapia marital”. O casal britânico, então, conhece a sedutora e misteriosa francesa Mimi (interpretada por Emmanuelle Seigner) e seu marido, o paraplégico de humor cáustico, Oscar (papel de Peter Coyote). Ao perceber o desejo que Mimi havia despertado em Nigel, o americano Oscar decide oferecer-lhe a chance de conquistar sua mulher, contando-lhe seus segredos, na ânsia de vivenciar o momento em que sua esposa seria seduzida por aquele homem que ele havia escolhido; mas em troca, Nigel teria que se comportar como um bom ouvinte e exercitar sua capacidade de empatia ao vivenciar toda dramatização em torno da história do casal.

Oscar e Mimi passam a viver um tórrido relacionamento, uma bela combinação do frescor e inocência de um amor juvenil, vivem de dias inseparáveis e de noites insaciáveis.Sentem juntos uma certeza cega, delirante, de que esse amor lhes era suficiente na vida e passam a viver apenas um para o outro, sem emprego, sem amigos, isolados em um apartamento, alimentando-se de desejo e prazer numa fusão representada pelo ato de Mimi ao derramar leite em seu próprio corpo, atraindo Oscar a saboreá-lo, com o ímpeto de uma criança faminta, sugando o sustento que brotara de seus seios.

Entretanto, fica evidente que algo falta ao casal que se consome cada vez mais em atos perversos na tentativa de temperar o seu amor. Seria essa uma forma de compensar a falta de afeto na relação? Onde está o carinho e o romantismo do amor outrora fresco e juvenil? Tal frustração de um amor não realizado, de forma inconsciente, revela-se em comportamentos agressivos. Mimi tem a navalha nas mãos e a carne de Oscar à sua disposição. A chaga na relação está feita e Mimi já bebe da hemorragia da emoção. O casal passa a representar o predomínio da pulsão de morte, no eterno conflito com a pulsão de vida, em que os dois ficam esmagados na luta que se estabelece entre a construção e a desconstrução de seu relacionamento, assim como disse Freud, a pulsão de morte é, portanto, “a pulsão por excelência, pois tende à redução absoluta das tensões internas, impelindo o ser vivo a retornar a um estado que, pela ausência de tensões, só poderia ser o estado inorgânico".Nesse momento Roman Polanski adentra o mundo das perversões sexuais e às práticas sado-masoquistas do casal.


O casal se desgasta; para Oscar a relação está por um fio, sente-se sufocado, necessita de liberdade, de variedade e então recorre a uma agência de prostituição, a mesma propagada no anúncio do ônibus 96. Sente pena de Mimi ao seu lado, em erupção, entregue e totalmente dependente daquele homem que beijava seus lábios como quem amassara um cigarro num cinzeiro. Mimi não aguenta a dor crônica de viver no vazio que era sua vida sem Oscar e em um ato impulsivo, como que se auto-multilasse, joga-se aos pés de seu amado, num esforço frenético para evitar a dor de um abandono real, disposta a viver com ele de qualquer forma suportando gritos, agressões e traições. Oscar vê aí a oportunidade perfeita para revelar seus traços sadistas, numa alternância entre extremos de idealização e desvalorização, transforma a vida de Mimi em um inferno mais quente do que ela poderia suportar.

Um dos momentos mais cruéis do filme é sem dúvidas quando Mimi recebe um convite tentador de Oscar, uma viagem para bem longe, uma oportunidade de um recomeço. Deitada ali num leito de hospital, ela ouve essa proposta como se estivera repousando no ninho da fênix, pronta para renascer das cinzas. Tratava-se apenas de um plano. Maquiavélico, Oscar arquitetou o projeto perfeito para se livrar dela e a abandona, fria e impiedosamente, sozinha num avião com destino a Martinica: “Para ela, deve ter sido um veneno. Para mim foi doce como um pêssego”.

Anos mais tarde Oscar é atropelado e vai parar num leito de hospital apenas com uma concussão e uma fratura no fêmur. Numa reviravolta surpreendente Mimi entra no quarto do hospital onde ele estava internado e relembrando o gesto que sacramentou o ciclo da relação num parque de diversões puxa-o do leito e derruba-o no chão. Na queda ela deixara-o paralisado da cintura para baixo, mas havia uma notícia ainda pior: “de hoje em diante, eu vou cuidar de você”, disse Mimi. Polanski nos faz sentir, então, toda a força do rancor e ressentimento de Mimi que nos mostra tudo o que uma mulher, cujo amor se converte em desejo de vingança, é capaz. Há agora uma inversão de papéis, levando Oscar a se sentir humilhado. E, como que numa comunhão entre o sádico e o masoquista, resolvem se unir pelos laços do matrimônio: “Sabíamos que não alcançaríamos os mesmos extremos de paixão e de crueldade com ninguém mais.”

Qual seria, de fato, a intenção do casal Oscar e Mimi a bordo desse transatlântico? Teria tudo sido um mero acontecimento casual dos fatos? Ou, como diria Jung, teria sido uma “coicidência significativa”? Na qual os acontecimentos se relacionam não por relação causal e sim por relação de significado. Sendo assim, os encontros e desencontros não teriam sido uma simples coincidência, pois não ocorreram baseados somente na aleatoriedade das circunstâncias, mas sim num padrão subjacente ou dinâmico expresso através de eventos ou relações significativos. Fica-nos a impressão de ter sido tudo um complô muito bem formulado pelo casal. Desde o encontro aparentemente casual, de Fiona com Mimi no banheiro do navio, até o envolvimento gradual de Nigel promovido pela narrativa de Oscar e postura sedutora e misteriosa da francesa. Oscar demonstra-se um marido que quer mais uma vez “sentir”. Parece desejar conquistar mais uma vez sua esposa, utilizando-se de outro homem para isso, como que na esperança de concretizar mais uma vez a emoção inicial de penetrar na alma de Mimi, buscando um novo começo, assim como o ano que está para chegar. Para tanto, envolve e deixa-se envolver por Nigel, na expectativa de surpreender e ser surpreendido, de perceber que aquela mulher ainda não se mostrou por inteiro a ele, de ver que ainda há mais de Mimi na própria Mimi do que Oscar, assim como demonstrado a Nigel, poderia possuir. Espera, talvez, sentir a emoção de ter o real poder sobre aquilo que considera possuído e saturado, buscando ainda uma gota de sangue da hemorragia já estancada.

O casal Mimi e Oscar revela necessidade de se compreender e ser compreendido, fazendo com que, numa demonstração de auto-piedade, Nigel e Fiona sintam um pouco da sua dor. Corroborando o ciclo vivido de desejo, satisfação, frustração, violência, remorso e culpa. Seria essa a grande motivação de todo o jogo? Teriam eles incorporado a altruística missão de prevenir a ruína de outro casal que, como eles um dia, havia chegado ao auge de seu relacionamento? Mostrando-lhes toda dor, humilhação, submissão, aprisionamento e possessão presentes na face obscura de um nobre e almejado sentimento chamado amor. Ou seria essa a oportunidade do casal promover sua catarse, purificando suas almas por meio da descarga emocional provocada pelo drama? Enfim, como diria Charles Chaplin “Num filme o que importa não é a realidade, mas o que dela possa extrair a imaginação.”


Thiago Moraes

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Hipnose: a pá que cava tesouros escondidos

A maioria das pessoas já ouviu falar de hipnose, mas poucas sabem realmente do que se trata. Você pode já ter assistido a um programa de televisão em que alguém era hipnotizado e comia uma cebola sentindo o sabor de uma maçã, ou alguma outra demonstração similar. Tais indivíduos podem até dominar determinadas técnicas, mas carecem de senso ético. A hipnose é um fenômeno que demonstra que nossas capacidades vão muito além do que estamos acostumados a experimentar no cotidiano; através dela podemos trazer à tona recursos internos que não acessamos normalmente. Utilizá-la em demonstrações fúteis, sensacionalistas, sem um fim relevante, é utilizá-la de forma leviana.

Para nós, psicólogos, o uso da hipnose é aprovado e regulamentado pela Resolução CFP Nº 013/00 de 20 de Dezembro de 2000, como um recurso terapêutico auxiliar. É importante para as pessoas que buscam ajuda profissional assegurar-se de que o escolhido é habilitado, informar-se e, se necessário, denunciar aos órgãos responsáveis. Mas o que é, afinal, a hipnose?

Podemos conceituá-la como um estado alternativo de consciência, atenção e percepção, “no qual as limitações que uma pessoa tem, no que diz respeito à sua estrutura comum de referências e crenças, ficam temporariamente alteradas, de modo que a pessoa se torna receptiva aos padrões, às associações e aos moldes de funcionamento que conduzem à solução de problemas”, de acordo com Milton Erickson, o criador da hipnose moderna. Hipnose moderna? E como é isso?

A forma mais conhecida de hipnose, inclusive devido aos programas de televisão anteriormente citados, é aquela a qual chamamos de clássica: o sujeito permanece numa posição passiva, na qual é submetido diretamente às sugestões do hipnotizador, que determina “como”, “quando” e “o quê” ele experimenta. O mesmo padrão de tratamento, com as mesmas sugestões é aplicado a todos os indivíduos com aquele diagnóstico de “depressão”, “fobia”, “tabagismo”, etc.

Milton Erickson (1901 – 1980) criou novas formas de utilizar a hipnose, proporcionando um transe natural no qual o foco de atenção é interior. A hipnoterapia ericksoniana é um procedimento individualizado, ou seja, feito sob medida para aquela pessoa, naquele momento. Não tratamos “a depressão” mas sim aquele indivíduo, que vivencia aquelas dificuldades, do seu jeito particular e vai participando ativamente do processo, que não é determinado pelo terapeuta, mas orientado no sentido de facilitar que o mesmo entre em contato com seus recursos inconscientes que podem levá-lo à solução de suas dificuldades.

O uso do termo “terapeuta” no lugar de “hipnotizador” atenta para o fato de que somos profissionais de saúde, portanto, nosso objetivo é sempre proporcionar bem-estar e melhorar a qualidade de vida das pessoas. A hipnose é ainda temida por muitos devido a idéias equivocadas tais como “a pessoa fica inconsciente e é controlada”; “a pessoa conta todos os seus segredos”; “a pessoa pode não voltar mais”. Na verdade, no estado de transe hipnótico não perdemos a consciência e não fazemos nada que não queiramos fazer; as sugestões podem ser aceitas ou não. E é impossível não voltar do transe; no máximo, podemos dormir e depois acordar normalmente. Além desses, há muitos outros mitos que podemos ir esclarecendo aos poucos.

Por ora, apresentamos a hipnose como um recurso facilitador, que acelera o processo terapêutico e pode trazer resultados fantásticos se bem utilizada. Amplas são as suas possibilidades de aplicação, abrangendo os mais diversos problemas de saúde e situações de vida, tais como estresse, transtornos alimentares, ansiedade, depressão, fobias, pânico, problemas de pele, disfunções sexuais, distúrbios do sono, dor, luto, baixa autoestima, timidez, entre tantos outros. O tesouro guardado todos nós temos. Mas para encontrá-lo é preciso pegar uma pá e cavar.

Camila Sousa de Almeida

Publicado no Portal Sergipe Saúde:

http://www.sergipesaude.com.br/artigo.php?op=36

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